sexta-feira, 17 de março de 2017

Capeia Arraiana- José Carlos Lages

José Carlos Lages- Natural do Sabugal é Professor universitário e Jornalista. É administrador do blogue "Capeia Arraiana". Tem desenvolvido a sua actividade na área dos conteúdos online: Gestor de portal online, criação de páginas para internet, acessor de comunicação e imagem, fotocompositor e paginador, entre outras coisas. É director do jornal mensuário "Sabugal", chefe de redacção da revista "Media XXI" e faz serviço voluntário na Força Aérea. Confrade-fundador e vice-chanceler da Confraria do Bucho Raiano, sócio fundador na Associação dos Amigos de Ruivós e sócio da Casa do Concelho do Sabugal em Lisboa.

É um defensor e apaixonado das tradições, dos costumes e das gentes da zona Arraiana, valorizando-as e promovendo-as. Teremos todo o gosto, de um dia, o receber em Vila Mendo.

Capeia Arraiana – a importância da tradição como valorização, promoção e desenvolvimento das comunidades raianas de Riba-Côa

 O concelho do Sabugal, no distrito da Guarda, tem uma área de 822,70 km2 (muito aproximada à ilha da da Madeira) e regista «apenas» 12 mil habitantes residentes. No mês de Agosto as persianas das «maisons» dos emigrantes abrem-se para ver passar a procissão do santo padroeiro da aldeia e a população triplica com um palavreado onde se misturam - e muito - as expressões francesas com o sotaque beirão raiano. O cartão de visita do Sabugal apresenta valiosos patrimónios históricos, gastronómicos e culturais unidos por tradições como a Capeia Arraiana que personifica a alma da identidade raiana dos sabugalenses.

O rio Côa nasce na Serra das Mesas, freguesia raiana dos Fóios e saltita cristalino e gelado transpondo seixos e barrocos através da Serra da Malcata fazendo uma breve pernoita na barragem do Sabugal antes de seguir viagem para Norte em direcção ao Douro e, por influência do homem, para terras da Cova da Beira.
No seu curso natural de 135 quilómetros alimenta a criação de trutas no viveiro de Quadrazais, dá um «estejas com Deus» ao castelo dionisino das cinco quinas do Sabugal que lhe responde – Vai com Deus! - e segue determinado em direcção a Vila Nova de Foz Côa. Para trás deixa belas praias fluviais naturais nos Fóios, Quadrazais, Sabugal, Rapoula do Côa, Vale das Éguas e Badamalos que têm vindo a cativar cada vez mais utentes nos quentes e secos meses do Verão.
O Côa tem um irmão gémeo – o rio Águeda – que também nasce na serra das Mesas do lado espanhol mas entendeu passear-se por terras de Castilla em direcção a Ciudad Rodrigo. A elevação rochosa por onde passa a linha de fronteira é protagonista estratégica única à escala da religião mundial. Em determinado local, perfeitamente identificado, sentavam-se à mesa quatro bispos – Lamego, Ciudad Rodrigo, Cória e Guarda – sem que nenhum saísse da sua diocese. Uma particularidade que mereceu em tempos um estudo e projecto de capela pelo autarca José Manuel Campos dos Fóios.
O território onde correm estes dois rios designa-se Riba-Côa e integra os concelhos do Sabugal, Almeida, Figueira de Castelo Rodrigo, Pinhel e Vila Nova de Foz Côa com um riquíssimo património histórico edificado onde se destacam os cinco castelos sabugalenses – das cinco quinas na vila sede de concelho, em Alfaiates, em Vilar Maior, em Vila do Touro e a aldeia histórica de Sortelha – os de Castelo Bom, Castelo Melhor, Castelo Mendo, Castelo Rodrigo, Monforte, Pinhel, a fortaleza amuralhada de Almeida e muitos pelourinhos que ficaram para nos lembrar a importância de algumas povoações agora praticamente desumanizadas.
Os sabugalenses, povo contrabandista e emigrante - sempre estiveram mais virados para Espanha do que para Lisboa. Como escreveu um dia o filósofo e pensador quadrazenho Pinharanda Gomes: «Não temos pruridos separatistas mas somos e sabemos que somos uma região, mesmo ignorada pela pertinaz ignorância das administrações centrais de Portugal. Somos uma região.»
O rei D. Dinis foi fundamental para Portugal e, em especial, para a região raiana de Riba-Côa. Após o Tratado de Alcanices, assinado a 12 de Setembro de 1279, entre os soberanos de Portugal, D. Dinis e de Leão e Castela, Fernando IV, o rio Côa deixou de fazer a fronteira entre os dois reinados e os marcos avançaram para Leste para as delimitações onde ainda hoje se encontram. Também por isso os sabugalenses das terras frias (entre o rio e a actual fronteira) dizem que o seu primeiro rei português foi... D. Dinis.
O Côa une e divide o concelho sabugalense em dois territórios com características climáticas muito diversas. Do lado de Sortelha as temperaturas das «Terras Quentes» são mais amenas e permitem culturas como, por exemplo, o azeite de muita qualidade. Do lado da Raia as principais culturas são resistentes à neve e às geadas que chegam cedo e «abalam» tarde.
Mas, o principal elemento diferenciador é, de facto, a Capeia Arraiana, que traduz de forma absorvente a identidade da alma do sabugalense raiano.
Desde a primeira Capeia do ano, em Aldeia Velha, com o pessoal a aquecer-se à volta das fogueiras que sobraram da passagem de ano tudo é motivo para a fiesta. O Entrudo, o domingo gordo, a Páscoa, o Santo António, o São João ou o São Pedro dão o mote para justificar o cartaz ou o alerta no final da missa domingueira.
O mês de Agosto carrega sempre o secreto apelo do regresso às origens para os que estão longe. No concelho do Sabugal faz povoar as aldeias, abrir as persianas, lotar os bancos das igrejas e encher os lugares públicos com um estranho mas familiar linguajar mesclado aqui e ali de expressões e palavras de origem francesa. Mas, para muitos dos sabugalenses é o tempo da mãe de todas as touradas – a Capeia Arraiana – espectáculo único que andou escondido esotericamente nas praças das nossas aldeias e que, agora, de há uns anos para cá parece ter perdido a vergonha e tudo faz para se dar a conhecer ao mundo. A tradição manda que as touradas com forcão, precedidas de encerro, se iniciem na Lageosa no dia 6 de Agosto e terminem em Aldeia Velha no dia 25. E que se oiça bem alto o grito: «Agarráááio»
Pelo meio dezenas de capeias, diurnas e nocturnas, encerros, desencerros, animam as férias dos que voltam todos os anos de propósito de Lisboa, de França, da Suíça ou do Luxemburgo. E, também por isso, se diz pela Raia que «onde há cornos há gente».
É a fiesta da Raia, é a fiesta dos raianos, da alma raiana. O climáx tem lugar na mãe de todas as Capeias no Festival «Ó Forcão Rapazes» realizado anualmente e de forma alternada nas praças de Aldeia da Ponte e do Soito. Nesse dia reúnem-se as equipas de Alfaiates, Aldeia do Bispo, Aldeia da Ponte, Aldeia Velha, Fóios, Forcalhos, Lageosa da Raia, Ozendo e Soito lidando com bravura pessoal e colectiva e à vez um touro sorteado ao som do apoio das respectivas claques de apoio.
Um dos mais lidos escritores raianos, Joaquim Manuel Correia, no seu livro «Memórias do Concelho do Sabugal» publicado no início do século passado diz que a coragem dos rapazes das aldeias media-se pela sua participação e valentia a agarrar ao Forcão. «Os rapazes não arranjavam namorada se não se metessem nos touros e aí daquele que se recusasse, que era homem desprezado pelas moças».
Mas... Forcão? O que é isso do forcão?
Sem forcão não há Capeia Arraiana. É esse arranjo de madeira com galhas atadas em forma de triângulo que faz toda a diferença. É uma estrutura triangular com três grossas galhas colocadas e atadas em forma de forquilha. A galha do meio divido o forcão em duas partes iguais e prolonga-se na traseira para permitir o leme ou rabiche, zona de comando onde agarram os rabejadores ou rabicheiros. O Forcão pode pesar 20 arrobas e é manejado em praça por cerca de 30 rapazes.
O historiador Adérito Tavares no seu livro «Capeia Arraiana» diz-nos que o termo pode derivar do francês «fourchette» e que «as capeias foram surgindo primeiro com uma ou duas vacas bravas que eram roubadas do lado de lá da Raia e depois com vacas emprestadas para pagar o prejuízo aos agricultores que viam as suas culturas dizimadas pelos animais espanhóis».
A Casa do Concelho do Sabugal, em Lisboa, organiza anualmente a festa dos sabugalenses na Capital. A primeira teve lugar no Campo Pequeno a 4 de Junho de 1978 e foi nesse tempo explicada assim pelos organizadores: «O nome Capeia Arraiana que demos à tourada no Campo Pequeno resultou de assim serem chamadas as touradas características das aldeias fronteiriças do nosso concelho. O termo caracteriza uma tourada em praça improvisada. Não foi concretamente o caso, mas o facto de termos trazido o Forcão conjuntamente com a realização do chamado Passeio dos Rapazes foi o bastante para que o termo se afigurasse ajustado.»
António Cabanas (texto) e Joaquim Tomé Tutatux (fotografia) publicaram recentemente um livro que tem um título sugestivo: «Forcão – Capeia Arraiana» Na página 201 pode ler-se: «Ó Forcão Rapazes! Dia de Capeia! Que excitação, que alegria no rosto e nos olhos! É como uma febre benigna que até os doentes revigora. A terra está cheia de gente, parentes e amigos que chegam de todo o país, e da França, da Alemanha, da Suíça, do Canadá e da América... Onde haja emigrante raiano, sempre se arranja as vacanças para Agosto e ele aí vem! É o apelo da Capeia, maleita para a qual não há vacina. Faz um gostinho à alma e mata saudades da família. Dois coelhos duma só cajadada...» ou ainda «A Capeia Arraiana não é uma tauromaquia qualquer. Como uma espécie de religião em que se acredita, não basta assistir, é preciso participar, ir ao encerro, comer a bucha, beber uns goles da borratcha e voltar com os touros, subir para as calampeiras, ser mordomo, ser crítico tauromáquico, discutir a qualidade dos bitchos da lide ou, simplesmente, ser fotógrafo da corrida que não deixa ninguém indiferente, corre na massa do sangue, provoca um nervoso miudinho, levanta os pêlos do peito, atarracha a garganta e perturba o sono. É um desassossego colectivo que comove.»
Bastas vezes ouvi autarcas dos municípios em redor comentar que as Capeias são uma «desculpa» para que os emigrantes voltem ano após ano e que «só era pena nas suas terras não terem um fenómeno com esta grandeza». Assim é de facto. A Raia sabugalense tem uma tradição que mexe e remexe com a vida das populações locais. Que se mantenha viva pela eternidade.

Confraria do Bucho Raiano
Outro dos factores que tem contribuído para a importância das tradições como valorização, promoção e desenvolvimento dos sabugalenses é a Confraria do Bucho Raiano que realiza anualmente um almoço no Entrudo para recordar as antigas reuniões familiares onde o bucho vinha à mesa acompanhado de batatas cozidas e grelos para festejar o Domingo Gordo antes do período de abstinência da Quaresma. O recordar desta tradição gastronómica tem aumento de ano para ano o número de participantes, bem como o número de confrarias gastronómicas de todo o País.

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